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terça-feira, 25 de setembro de 2012

Bento


Bento nasceu poeta. Veio ao mundo numa tarde de primavera enquanto a velha vitrola de seu avô espalhava pelo quarto uma canção da Elis. Batizado após leituras Machadianas, Bento cresceu correndo com os pés no chão, sentindo a terra amarela tingir seus pés, fazendo de sua meninice um capítulo de histórias que só a ele pertenciam. Duelava com ferozes dragões, refugiava-se em seu castelo no topo da montanha mais alta e percorria o mundo em seu pequeno aeroplano, à procura do grande tesouro ao final do arco-íris.

Bento cresceu poeta. Saiu de casa muito cedo, de mochila nas costas e cabelo em rabo de cavalo. Demorou até entender o que queria e talvez até hoje não tenha encontrado todas as peças do quebra-cabeça. Tem sonhos que não cabem no coração, nem no papel e muito menos nas paredes rabiscadas do seu quarto. É que Bento vive a poesia das coisas que inspiram seus dias como quem vive o último dos dias.

Bento é poeta. Fez do mar sua maior inspiração, seu conselheiro mais fiel. Fez amigos-irmãos, daqueles para toda a vida, guardados do lado esquerdo do peito, como Milton já cantou. Também teve amores, cada um, um capítulo à parte, guardados em uma gaveta qualquer. Não eram seu ponto fraco, não mais. Hoje, rende-se aos doces, geralmente devorados nas noites de insônia enquanto a caneta rabisca algum verso ou um desenho sem propósito e forma definida.

Acontece que, diferente de tantos outros rapazes, Bento é doce. Herança dos dias de pé no chão, das horas em frente ao mar. Apesar da pose de homem sério, tinha olhos de menino arteiro com as mãos lambuzadas de chocolate.

Coisas de Bento, que nasceu poeta.
Esse texto faz parte da série escrita exclusivamente para Esquinas.

Conheça também Li.

domingo, 23 de setembro de 2012

João


Não precisei de muito pra notar você parado algumas poltronas à frente naquele ônibus azul. Talvez a sua pele branca demais tenha denunciado sua presença ou, quem sabe, os cachos cor de terra do seu cabelo tenham capturado minha atenção em fração de segundos, prendendo meu olhar e fazendo minha respiração perder o ritmo. Nunca acreditei em amor à primeira vista, mas te amei assim que me percebi dançando a sua dança. Ainda que eu nunca houvesse lhe oferecido a minha mão, você me conduziu com verdadeira maestria, ali mesmo entre poltronas, pessoas e solavancos.

Poderia ficar ali sentado, observando seu jeito desajeitado, de mochila nas costas e All Star surrado, perguntando com toda educação ao cobrador em que ponto ativar o sinal de parada. Mas talvez naquele dia eu merecesse mais do que um simples amor passageiro. Talvez eu merecesse mais de você, meu querido desconhecido que já tomava meu sorriso mais espontâneo pelo simples fato de existir, de estar diante dos meus olhos e parecer ser quem eu sempre esperei.

Tantos laços já me ligavam a você, que não me surpreendi ao vê-lo se aproximar e sentar ao meu lado. Você e sua pele branca demais, seu cabelo cor de terra e seu perfume amadeirado. Pareceu natural, como se nos pertencêssemos desde sempre e fôssemos as partes dispostas de um grande imã, unidas em qualquer situação.

E nessa situação esse imã te trouxe de longe, pra encher meus olhos de brilho nesse dia comum. Quis então ser teu guia, te mostrar cada canto da cidade e fazer deles uma lembrança boa, algo que representasse para nós. Descobri um pouco de você, gravei sua voz e me encantei com sua paixão pelo violão clássico e seu sonho de viver de música. Pensei mil coisas, deixei escapar um sorriso de canto e tive a certeza de que era você o meu par nessa dança que já ganhava contornos de nós dois, embalados pelas canções que um dia você faria pra mim.

Mas então o ônibus diminuiu a velocidade e parou. O cobrador fez sinal e você precisou descer. Antes um aperto de mão e um sorriso educado como agradecimento à companhia e só. Continuei sentado, olhando você partir e atravessar a rua sem ao menos olhar para trás. Talvez eu não tenha sido seu grande amor inesperado, mas prefiro acreditar que você já sofreu o bastante para continuar acreditando em amor à primeira vista, e ainda que qualquer sentimento tenha brotado ai dentro, você preferiu seguir andando sem pensar demais.

Você, a quem eu nem ao menos perguntei o nome, ficará na minha cabeça pelo resto da semana até que eu me canse de lembrar e aos poucos me esqueça dos detalhes desse nosso encontro. Você, a quem no meio de uma dose de vodka e suco de maracujá, batizei de João.

*Texto que nasceu após uma conversa entre amigos, numa noite, no quintal.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Dos dias de calor


Tantos dias de calor surtiram em mim uma inquietação estranha e aumentaram aquela velha vontade de “não sei o que”, que vez por outra acompanha meus dias. Vontade de pular etapas, distribuir elogios, adotar um cachorro e comprar um apartamento branco onde pudesse abrigar meus milhares de sonhos. Difícil definir a sensação. Talvez seja pura ansiedade, talvez carência ou, quem sabe, uma espécie de TPM adquirida pela convivência diária com tantas mulheres e os mais diversos ciclos hormonais.

Passei a me alimentar de paixões, uma a cada dia. Amores platônicos das ruas por onde ando, do ônibus, da fila do supermercado. Engraçado durarem apenas 24 horas, alguns poucos minutos a mais ou a menos até darem espaço a um novo sorriso, a uma nova paixão. Sou bobo com essas coisas e já imagino tardes de sorvete com direito a comentários dos filmes da noite anterior.

Talvez seja mesmo carência. Não leia solidão, e sim carência em seu sentido mais romântico e conjugal. Desnecessariamente ou não, essa vontade de estar com alguém tem tido relevância no meu dia-a-dia, guiando minhas conversas, meus olhares e as trilhas sonoras do meu celular.

Uma mudança sutil de sensações, tudo muito saudável, sem neuroses ou crises agudas de lágrimas e soluços. De estranho, apenas o desejo incontrolável de abrir a correspondência alheia jogada ao pé da escada, ignorada pelo real destinatário que parece nem ao menos saber da sua existência.

De fato, é carência, e meu coração até já abriu edital. 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Quereres


Quis parar de ter em você a razão dos meus antigos dias de sol. A razão das minhas gargalhadas mais gostosas, das palavras doces nos meus poemas, do meu novo visual. Quis não ter apenas as suas velhas cartas para ler, quando a necessidade de ter certeza que um dia fui amado batia mais forte. Quis não ter guardado o frasco vazio do seu perfume adocicado, o anel que selava nosso compromisso e ainda o isqueiro cor-de-rosa que você esqueceu sobre a mesa naquela tarde de domingo.

Quis ainda poder esconder nossas fotos, quem sabe rasgá-las, fazê-las em pedaços e atirar cada fração ao mar. Quis parar de achar seu sorriso o mais bonito e controlar o impulso de te abraçar em cada lugar que te vejo, entrelaçando disfarçadamente os meus dedos aos cachos do seu cabelo. Quis achar que hoje você desafina, mas descobri que aquela nossa canção nunca saiu do tom.

Em momentos como esse quis poder jogar, frustrado, o celular sobre a cama, por não encontrar seu nome na agenda. Quis mesmo, um dia, tirar da memória os oito dígitos que me ligavam a você e me tornavam ainda mais incapaz de te fazer distante.

Quis, e por mais fortes que tenham sido as tentativas, me entreguei ao cansaço e levantei a bandeira branca em sinal de rendição. Só então aprendi a nadar mais uma vez, ainda que frágil. Peixe pequeno desbravando outro mar, menino novo dobrando a esquina rumo ao próximo quarteirão.

Há três anos você faz parte de mim.

sábado, 1 de setembro de 2012

A volta


Do alto da rua ele avistou a casa amarela de janelas vermelhas. Por um instante foi abatido por um sentimento de saudade que lhe invadiu o peito e fez chorar os olhos. Descansou a mala surrada no chão e perdeu a coragem de seguir adiante. Havia crescido ali, correndo com os pés no barro, soltando pipa nos dias de sol e chutando lama quando o céu fazia chover.

Era o menor dos meninos da rua, mas tinha pose de rapaz grande, de olhos atentos e cabelos tão ruivos quanto o fogo das fogueiras de São João. O santo lhe apadrinhava a vida, inspirava o nome, protegia seus dias e as traquinagens de menino arteiro. Sua avó sempre dizia que seu nome era nome importante e que a ele lhe devia respeito. E assim, desde cedo, acostumou-se a passar todos os dias pela capela no alto do morro e fazer o sinal da cruz pedindo proteção.

Quando as brincadeiras de criança deram espaço às preocupações de gente adulta, ele se cansou das ruas que acabavam depois de alguns quarteirões e partiu para ganhar o mundo, confiando na sorte e nos cuidados dos céus. Saiu de casa com a benção da mãe, levando no peito a medalhinha da avó a quem tinha tanto apreço.

Passou fome, frio, trabalhou duro, casou-se, teve um filho, perdeu um filho, divorciou-se e se viu sozinho por entre as luzes da cidade grande. Lá onde as ruas não tinham fim, onde o chão era cinza e onde não se via pipas no céu. Foi então que decidiu voltar, recobrar os sentidos, procurar pela chama que o movia e que há muito se apagou. Não era como retroceder, andar para traz ou morrer na praia depois de tanto nadar. Voltaria pela esperança de resgatar aquele que um dia foi.

De volta, parado a poucos metros da casa onde crescera, além da saudade que o tomou de repente, sentiu medo de prosseguir. Medo bobo já que ele era aquilo que via. O céu azul, o chão de barro, a capela no alto do morro. Então seguiu enchendo os pulmões de puro ar, e ao parar em frente à porta de madeira, deixou que o cheiro do feijão de sua mãe lhe invadisse o nariz. Olhou no relógio que apontava o começo da tarde. Havia chegado na hora certa.

Sem convite ou anúncio entrou casa adentro, e se seu peito ardia em chamas, era pela certeza de que somente ali seria feliz.