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quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Pertencer

As chaves caíram sem jeito sobre a mesa de vidro, produzindo um barulho incômodo no silêncio da sala. Passava das três horas de uma madrugada estranha. Havia saído de casa com o coração em chamas, ardendo de aflição, talvez tão vermelho quanto meus olhos que não sabiam mais conter o choro. Soluçávamos. Parecíamos dois inconsoláveis ali no escuro do quarto, armados da dureza de cada palavra que pulava boca afora. Precisei sair. Precisei te deixar por alguns minutos, mesmo que aos prantos. Dessa vez eu não poderia te proteger com um abraço e enxugar seu rosto com as costas das mãos. Nos estranhávamos feito cão e gato e nossa compatibilidade tão natural, naquele momento, havia se tornado incompatível.

Precisei sair. Precisei de abrigo e não era em seu corpo que eu desejava aninhar o meu. Não queria o calor da sua pele, nem o toque dos seus dedos a me massagear a cabeça e, assim, acalmar o coração. Você era fera. Eu era a fera. Ambos éramos a presa. Caímos na nossa própria armadilha e quando o espinho perfurou, doeu tanto que foi inevitável gritar. Gritamos tanto, que a estranheza do silêncio quando cessaram as palavras embrulhou o estômago. Então saí sem nem mesmo me importar com o que vestia, ou se minha cara era de poucos amigos e coração partido. Te deixar foi a solução. A rua me abrigou.

Nunca brigamos. Em todos esses anos, suportamos nossas manias e nossos defeitos, jogando os infortúnios debaixo do tapete, feito pó. Tentamos apaziguar nossas diferenças, pincelando nossas poucas qualidades sobre elas, cobrindo tudo com borrões que nos pareciam convincentes. Bastou a primeira chuva pra tudo escorrer, pelo rosto, entre os dedos, sobre os lençóis da nossa cama. Fizemos tudo errado e ainda brindamos com chá e biscoitos.

Minha vontade era sumir no mundo, tomar o rumo da rua até desaparecer por completo. Acontece que meu sedentarismo não me permitiu ir muito além que duas quadras e, já sem forças pra caminhar, só consegui me jogar num banco qualquer até poder retornar. Me despi de todo e qualquer sentimento. Estava vazio e o vazio me fez voltar. Não fazia ideia de quanto tempo estava ali, de pijamas, sentado ao relento colocando tudo em ordem até não sobrar nada.  Voltei a passos largos pela rua. Tanto vazio dentro do peito já incomodava. Acho que já era falta. Saudade e arrependimento, tudo junto. Ainda assim, algo que se fez necessário; um ponto de luz no fim de um túnel que começava a desabar sobre nós.

Assustei com o barulho que as chaves fizeram quando as joguei sobre a mesa, estragando minha vontade de não me fazer notar. Mas você já dormia e nem sequer percebeu. Já no quarto, te observei por alguns instantes enquanto dormia sob a luz do abajur. Talvez estivesse sonhando ou, quem sabe, seus pensamentos estivessem tão vazios quanto os meus. Apesar da bagunça dos lençóis caídos no chão, o ar já estava mais ameno e respirar já não era tão difícil.

Deitei, ao seu lado e enlacei sua cintura com um abraço calmo. Tocar sua pele me devolveu um velho sentimento de pertencimento. Sim, acredite! Pertencemos um ao outro desde que nos fizemos um só. Te querer bem é meu maior estimulo a prosseguir, ainda que seja preciso derrubar o amontoado de pedras tortas que rodeavam nossa relação.